Si Bemol

Babbo toca violão muito bem. Autodidata e eclético até não mais poder, vai de pérolas do cancioneiro popular ao rock inglês, passando pelas melodias francesas dos anos dourados, pela bossa nova e pela Arca de Noé de Vinícius.

Embora eu tivesse o disco, preferia as interpretações do Babbo para o pato pateta, o leão-leão-leão-és-o-rei-da-criação…

Datam dessa mesma época minhas primeiras experiências na cozinha da vó Dinah e nas performances musicais.

Com quatro anos, a vó me deixava brincar com a massa de macarrão e ser sua sous-chef. E com quatro ou cinco anos foi registrado em fita cassete meu primeiro dueto com o Babbo. A música também era de Vinícius, em parceria com Tom Jobim, mas não falava de porquinhos que iam pro céu, nem de casas muito engraçadas.

“Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
Eu não existo sem você

Assim como não demorei a querer fazer meus próprios quitutes e passei a copiar receitas dos livros das vós tão logo pude desenhar as letras, cedo agarrou-me uma vontade de fazer mais do que cantar algumas frases nos duetos com o Babbo.

Queria saber fazer almoço para um mundão de gente, queria aprender aquelas notas e ritmos e batidas e dedilhados.

No começo, tal e qual muita coisa na vida, foi preciso paciência. Não de mim, que estava empolgadíssima com o violão e com as panelas. Mas de meus entes queridos, santas criaturas que ouviram milhares de tentativas de “Parabéns pra Você” e “Cai-cai Balão” muito do desafinadas enquanto engoliam purês de batata empedrados de farinha, bifes carbonizados e outras iguarias nada apetitosas.

A intrepidez, que me acompanha desde de sempre, foi a grande responsável por não ter abandonado as duas empreitadas nesses começos pouco animadores.

Um dia fiz uma carne assada de panela com macarrão que alimentou e reconfortou a família toda, dando início à era de mais alegrias do que reveses culinários. Também não tardou para que finalmente os Lás, Rés e Mis saíssem das cordas de náilon mais ou menos afinados e harmônicos, enchendo de orgulho um pai já babão.

Um acorde, no entanto, eu evitava. Meus dedinhos de nove anos nem sempre davam conta do violão de gente grande, de modo que a presença de um único Si Bemol, mesmo que fosse na introdução, deixava a canção fora do meu repertório.

O medo daquela verdadeira posição de yoga usando polegar-indicador-médio-anelar-mínimo foi passando à medida que crescia. Lá pelos 17 anos, além de afinar sozinha o violão, de aprender músicas “de ouvido” e de ter atingido um repertório quase tão eclético quanto o do Babbo, o Si Bemol já não me oferecia nenhuma ameaça.

Na cozinha, entretanto, ainda há aqueles preparados que por um motivo ou outro (suspeito que seja mais outro do que um) nunca fizeram parte de meu cancioneiro culinário, por assim dizer.

Não se trata exatamente de complexidade de receita, tampouco de ingredientes. Mas ouço um sininho em Si Bemol ao lembrar que nunca preparei pratos que para outras pessoas parecem tão simples, fáceis, naturais até.

A letra de “Eu não existo sem você” fala que o sofrimento contribui para a grandeza do poeta. Assim como os obstáculos gastronômicos atiçam a vontade, as dificuldades de percurso temperam a vida da cozinheira. E a demolha do bacalhau, Leitor e Leitora queridos, é o Si Bemol culinário que pretendo em breve conquistar!

A quem interessar possa…
Esse escrito nasceu de uma só vez, sem edição nem cortes, inspirado pelo fato de que amanhã meu pai, o Babbo, será um sessentão.
Feliz aniversário! 😀

.*. Atualização .*.

Eu consegui, eu consegui, eu consegui!!! Acabo de preparar meu Si Bemol culinário em forma de brandade. Veja aqui como ficou 😀



14 comentários em “Si Bemol

  1. Babo

    Fico muito feliz, babando e quase sem palavras doces para temperar seus quitutes, minha querida e primeira Filha. A emoção toma conta da gente por coisas tão simples e ternas, que nos enchem de gratidão a Deus e de felicidade, por fazer parte de uma história de beleza 1, 3, 5, 7 ….. ( para um matemático, beleza ímpar). Você foi muito feliz na fusão desse ícone da MPB, que produz sentimentos tão elevados com teus talentos culinários já aflorados. Um beijão do amado Babo, aquele que deixa hoje de ser um pré-idoso.

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  2. Cláudia

    Que lindo Dadivosa, todos nós temos os si bemóis da vida. Ainda bem, porque assim também há a chance de superarmos as dificuldades. Um grande beijo para o seu Babo que, pelo jeito, é um fofo de marca maior.

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  3. augusto

    bacana, querida leitura, a família toda se expressa de maneira cativante. e a analogia com o si bemol é bastante interessante.
    uma sugestão, e se você começar a encarar a demolha do bacalhau como um lá sustenido? vai que facilita…

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  4. Maria Isabel Silva

    Uma cozinheira fantástica como a Davidosa e tem “medo” de demolhar bacalhau?!!!!!
    Querida, é tão simples. Aqui, no norte de Portugal (Porto), fazemos assim:
    Corta-se o bacalhau em postas como queremos, grandes ou pequenas, ou das duas maneiras. Numa bacia (taça grande) põem-se as postas com a pele virada para cima, cobre-se com água e vai para o frigorífico/geladeira durante três dias mudando a água pela manha e á noite. Se o bacalhau for pequeno e fino dois dias está bem, se for muito “alto” quatro dias. É melhor ficar sem sal do que salgado.É importante estar sempre no frio e mudar a água. Depois é só secar em panos ou papel de cozinha, embrulhar em papel filme/plástico e congelar. Convém embrulhar as postas uma a uma para na hora de usar poder tirar a quantidade necessária. Conserva muito tempo no frezer e usa-se depois de descongelar.
    Para cozer, põe-se as postas em água fria e vai ao lume até ferver, tira-se a panela do fogo e aguarda-se alguns minutos. Eu aproveito sempre a água de cozer o bacalhau, ou para fazer o molho branco, se a receita o pedir ou para fazer açorda ou até um arroz simples, com muita salsinha picada, uma maravilha.

    Descobri o seu blog através da Elvira’s Bistrot e quero lhe agradecer as suas receitas davidosamente postadas.
    Um grande abraço para si e felicidades para seu pai e toda a sua família
    Isabel

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  5. Leilah

    Que lindo esse texto! Delícia de ler! Babbo deve ser cada dia mais babão com uma filha tão dadivosa!
    Bjos! E mta saúde e felicidades ao Babbo Dadivoso!

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  6. Dadivosa

    Diogo, obrigada pela visita. Os Destemperados já estão na minha lista de recomendações, aí do lado ;D

    Babbo, adorei o “beleza 1,3,5,7”, vou usar!!!

    Cláudia, que graça teria, não é mesmo?

    Obrigada, Fer! ;***

    Augusto, amei a idéia, faz tudo ficar mais fácil mesmo!

    Isabel, enviei um e-mail para você. Agradeço demais a sua explicação ;***

    Leilah, ele até hoje me chama de “meu bebê”, acredita?

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  7. Cravo da Índia

    Prosa boa. É um prazer vir aqui:)
    Só um acrescento à explicação da Isabel: não colocar na mesma tigela pedaços com espessuras diferentes simplifica. Ou então colocar os mais finos por cima. Pode parecer uma coisa óbvia, mas às vezes não nos lembramos. No início eu não separava por tamanhos e alguns ficavam salgados demais e outros de menos:)

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  8. Neile

    Nossa, Dadi! Vc é mesmo uma mulher de muitas dádivas e prendas!!! Esta de tocar violáo foi demais pra mim! Coisa preciosa….Um dia espero ver…e parabéns atrasados ao seu Babbo..

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  9. Lívia

    Dadi,
    Que texto adorável!
    Não sabia q vc tb como eu, além do amor aos temperos tb amava as notas musicais.
    Depois temos q conversar sobre isso, comadre.
    um beijo,
    Lívia

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  10. Joana De Lazari

    Menina, vc é mto mais genial do que o babão do seu Babbo me contou, ontem, durante o niver de sua tia Rosane. A gente se reuniu lá na casa do Ricardo/Maurício, rimos muito, relembramos , seu pai e eu, de nossos encontros musicais sp mto agrad;aveis. Daí ele me falou de seu site. Que espetáculo! Parabéns! Vou te mandar uma receitinha de bolo “Bolo de laranja da Vovó” ; gosto pq é mto fácil de fazer. Se quiser é só avisar, pois, de repente vc. já tem. Gd abraço, Joana

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  11. Pingback: Dadivosa » Brandade de Bacalhau Celestial da Elvira

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