De volta à Suíça

– Ça va, ma jolie cusinière?
– Tô triste, Suíço.
– Vem pra cá!
– Ó que eu vou…
– Ouiiiii!!

Chego duas semanas depois dessa conversa pelo Skype meio em frangalhos, com alguns planos, casacos e biquíni (porque o tempo era incerto), cachaça e suco de maracujá na bagagem conforme o pedido. Os frangalhos, aquela troca de casca anual e necessária mas nem por isso confortável, começam a cair já pela janela do trem que passa ao redor do lago.

O mesmo amigo do Suíço, que o acolhia há um mês e tanto, atura a intrusa por 20 dias. Mentira. Não atura. Viramos amigos instantâneos, parece que nos conhecemos há dez anos. Bebemos caipirinha e dançamos na sala até a madrugada – vejam só – pop francês dos anos 80 e toda sorte de musiquinhas coreografáveis, parando em Livin’ La Vida Loca do Ricky Martin só porque o vizinho desce para reclamar, todo gentil, todo educado, todo suíço.

Somos três. Três mais ou menos recentemente solteiros que queimaram seus navios e largaram o que muitos chamam de ‘vida estável’ em busca do que de verdade importa, querendo pisar no mundo de um jeito mais leve e dispostos a bancar suas próprias escolhas, por mais desafiadoras que sejam. Conversamos noite adentro e tarde afora naquele apartamento com janelas de coração.

Rimos e choramos juntos, compartilhamos bobagens, confissões, confidências e profundezas. Das mais ricas, doloridas, surpreendentes, felizes e promissoras profundezas. Faço fotos dos pés em frente ao espelho da sala. Muitas delas.

Jogamos Uno com o Léonard, filho do anfitrião, que mora com ele e com a mãe em semanas alternadas. Passeamos com o pequeno, preparamos a festinha de aniversário dele. Faço brigadeiros com granulado marrom e colorido, as crianças não curtem, acham muito doce (também acho). Preparamos tapas para os adultos: nós três e os poucos vizinhos daquele prédio antigo com uma claraboia no meio. Léonard chega correndo, cata o primeiro copo que vê pela frente e, antes que consigamos impedir, emborca um golão de vinho. E faz a cara mais malina, ri até quase chorar, acha o máximo esse engano, sente-se muito adulto aos seis anos. Desenhamos e contamos histórias. Vamos almoçar onde Léo quer me levar, um restaurante chinês. Tiramos muitas, muitas fotos. Caminhamos montanha acima, vemos cogumelos, subimos na torre, comemos maçã roubada do pé, catamos espadas em forma de graveto. Tenho uma flor no cabelo e Léo diz que estou bonita. Acredito. Quando um menino-de-tudo diz uma coisa dessas, a gente acredita. Semana sim, semana não, portanto, somos quatro. Quatro crianças descobrindo o mundo.

E, feito criança, vou brincar de comprar frutas e legumes da estação na feirinha orgânica local, o mercado da praça que acontece aos sábados. Compro ingredientes e cozinho nesse e em praticamente todos os outros dias em que ficamos em casa. Ou melhor, cozinhamos. Os três juntos; um comanda e os outros dois ajudam; um sozinho pra fazer agrado aos outros dois (ou outros três, semana sim, semana não) e em duplas para o terceiro ficar com a louça. Sou muito paparicada por eles.

Etienne, amigo dos dois, oferece-nos um jantar. Como ele cozinha bem, como esses homens suíços cozinham bem! Ganho dele um livro do Girardet. Pierre-Alain é nomeado Chef Pâtissier, o Suíço é o Saucier e eu… bem, eu sou Dadivosa, La Jolie Cuisinière.

Dadivosa toma leite de vaca suíça, creme de leite de vaca suíça, queijo de leite de vaca suíça, iogurte de leite de vaca suíça. Que me lembre, só um pedacinho de chocolate de leite de vaca suíça, que não sou lá muito fã de doce. Vamos os dois dançar com as uvas na festa da colheita. Vamos os três tomar banho nas águas borbulhantes de Lavey no meio da semana, somos os mais jovens do lugar. Temos ataques de bobeira, lagarteamos ao sol fraquinho, deixamos a água correr com força pela espinha, boiamos com os ouvidos submersos ouvindo sons de baleias, que bom que trouxe o biquíni. Voltamos com sono. Estamos sempre em dupla ou em trio e, ao contrário dos meus planos, apesar de gostar, não viajo sozinha por um só momento e é melhor assim, tenho certeza.

Tinha planejado dar um pulo na Espanha, precisava resolver umas coisas, fechar conta em banco, matar saudades. Vamos os dois, jantamos no que pra mim é o melhor restaurante de Madri. Tanto fazemos que convencemos o terceiro a vir também. Encontramos mais gente pelo caminho, vamos de tapas e de copas, dançamos, compro muitos livros de comida, os dois me ajudam a levar todo aquele peso até o hotel antes de continuarmos a movida. Compro outra mala. Arrasto Pierre-Alain para o supermercado – como se precisasse – e voltamos carregados de sacolas cheias de latas e vidros mil, de azeite a bochecha de bacalhau, para o espanto e gozação eterna do Saucier. Trocamos presentes, recuerdos engraçadinhos de nossa crescente coleção de piadas internas. Encho a segunda mala, os meninos carregam o trambolho escada abaixo e Calle Fuencarral afora até chegarmos ao táxi.

Também tinha planos de passar uns dias em Paris, minha irmã estava por lá. Mas vamos os dois pra Fribourg. Sinto-me em casa, conheço a família do Suíço, tenho saudades da minha. O pai dele faz o melhor steak tartar que já comi na vida, e não foram poucos. A mãe dele, linda, esguia, doce, ao saber que cozinho me leva para ver os seus livros, relíquias comentadas com letra bonita em caneta azul. Tinha guardado uns recortes de revista pra me mostrar também e me passa sua receita secreta para Moutarde de Bénichon.

O irmão mais novo, se cozinha, não sei. O outro irmão é especialista em jardins, sabe tudo de plantas, tem programa na TV e no rádio, escreve lindo, o livro dele tá para sair. Casado com uma francesa que, adivinhem, cozinha muito bem. Repito-me. Colho morangos e tomates no quintal. Ao chegarmos em casa, a família dele liga. Querem saber ‘o que somos’ um do outro. Rimos muito.

Visitamos Gruyère e Bern. Vamos ao museu Giger, tiro fotos com réplicas do Alien, compro especiarias com embalagens escritas em alemão, tiro foto dos meus pés na chuva, tiro fotos de corações de chocolate, tiro fotos dos nossos pés no trem. Chega o frio, dormimos em Fribourg, visitamos um museu de marionetes, voltamos no dia seguinte.

Vejo nascer naqueles dias essa carinha que estampa o site, a marca da Dadivosa que eu tinha encomendado antes de chegar lá. Acompanho o processo meio de perto, meio de longe. O Saucier pensa numas coisas, eu em outras outras e, por fim, ele apresenta a ideia que vingou. Amplia um pontinho vermelho na tela: “Olha, reconhece? É a tua boca“. Vem o cabelo, a franja de lado, um olho fechado. Ele me vê assim, eu me reconheço ali. Pâtissier dá uns pitacos, dou outros et voilà.

Da tristeza não sobra nada. Despedimo-nos entre abraços infinitos, olhos marejados (dos três) e um beicinho de choro (meu). Um ano depois, dou-me conta de que havia contado muito pouco da viagem aqui (apesar dessa tripa de texto, sigo sem contar boa parte) e que talvez o Leitor e a Leitora achem que andei novamente em terras helvéticas. Não andei, mas quase. É que venho revivendo isso tudo nos últimos dias, pois dessa vez é um pedaço da Suíça que vem até mim. Seremos dois outra vez. Conversaremos de bobagens e profundezas, trocaremos confissões e confidências, riremos muito, pode ser que choremos em algum momento, sairemos um pouco, cozinharemos todo dia e Pierre-Alain e Léonard vão estar com a gente, pois estou pensando em colocar um brega de raiz e dançarmos todos em suas respectivas salas, fazendo balbúrdia pelo Skype. Mas vai ser no meio da tarde, pra evitar encrenca com meus vizinhos, que de suíços não têm nada.



19 comentários em “De volta à Suíça

  1. Neiva

    Adorei seus comentários, viajei contigo, surfei em suas idéias , quão doce é essa amizade despretenciosa, essa riqueza de alma, em que, o que se importa mesmo é viver cada instante com todo conteúdo, que cada alma ali envolvida carrega.
    Sempre Feliz!

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  2. Jana

    Há quase 5 anos suas histórias têm me provocado assombros de leveza. E com seu exemplo tenho me tornado Dadivosa também. Amo suas histórias, sua escrita, suas receitas, suas sapatilhas e sua nobreza.
    Um beijo!
    Jana.

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  3. Graça

    Nem sei por onde começar, se pela vontade que não acabe a escrita, se pela viagem que faço de cada vez que leio os seus escritos, se pela vontade de manter esse espirito jovial que me empolga. Se, se se…não conhecesse este seu Dadivosa…eu era mais pobre 🙂
    Beijos, abraços e muitos palhaços

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  4. Sylvia Maria

    Não sei explicar, mas tem gente (raríssima por sinal) que escreve com a alma, mas não é uma alma comum… é bem mais elevada. E aí, nos tira do chão, nos faz flutuar, e até esquecer desta vida medíocre do dia a dia…
    Grata por me fazer tocar e sentir o lado bom da vida.
    Você é uma dessas “gentes” raras! rsrsrs

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    1. Dadivosa

      Que bom, Sylvia! Mas a vida não precisa ser medíocre não, é só a gente olhar com atenção e, como você disse, dar umas flutuadas. Um beijão e obrigada por comentar ;***

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