Um homem inebriante, inesquecível, cheiroso

Morava numa cidade onde havia, em quase todo bairro, um indiano em cada esquina, indiano servindo para designar desde lojinhas de conveniência que vendiam leite com  prazo de validade vencido, até portinhas quase suspeitas que entregavam fumegantes e aromáticas refeições em embalagens de alumínio, passando pelos movimentados restaurantes de paredes vermelhas com garçons de reluzentes cabelos negros e profundos olhos amendoados.

Variados foram os momentos felizes que tiveram o aroma das especiarias indianas como pano de fundo. No indiano da esquina dava um pulo naquelas horas em que me agarrava a vontade de bater um bolinho de cenoura e, no meio da função, descobria estar sem chocolate para a cobertura, pois o mercado mais próximo era longe demais para o adiantado da hora ou para o frio que fazia.

Era para o indiano da esquina que ligávamos quando não havia energia ou tempo para preparar o jantar, já que batatas fritas, sanduíches e pizzas de massa grossa não nos apeteciam, já havíamos recorrido ao chinês da esquina há poucas semanas e se era para comer algo em frente à TV, então que fosse gostoso, colorido, repleto de vegetais, com diversão para a boca e acalanto para o coração.

Foi num restaurante de paredes vermelhas e garçons de cabelo lustroso e olhos amendoados que, diante de um copo de lassi e em meio às palavras desconexas de uma frase desastrada, ensaiada e disfarçadamente corriqueira, ouvi um tímido e apaixonado eu te amo num idioma que não era o meu.

A paixão foi um pouco mais intensa e durou um tanto mais do que o ardido daquele frango ao curry que me arrebatou as pupilas gustativas e cujo fogaréu nem o lassi deu conta de abrandar. Vão-se os amores, ficam os sabores, já disse d’outra feita. E meu caso de amor com as especiarias indianas tem hoje mais anos de vida do que qualquer namoro ou casamento, daqui e d’alhures.

Pode ser pela conveniência de estar sempre logo ali, pode até bem ser pela alegria de receber à porta a pequena pilha de quentinhas variadas quando o estômago ronca e não há forças para ir ao fogão. Suspeito, no entanto, que foi a lembrança daquela noite no restaurante, da tão singela e ao mesmo tempo forte declaração de amor, da simpatia e cumplicidade dos garçons do cabelos pretos, do coração que pulava pela boca dormente de pimenta, do lassi geladinho a descer pela garganta, do sorriso bobo e das lágrimas que escapavam dos olhos de nós dois, que o curry ficou pra sempre marcado em minha memória gustativo-afetiva como ingrediente aconchegante, perfeito para comidas de alma.

Nostalgia é falta de memória, e enquanto revivo o momento para encontrar lá no fundo do baú as palavras que possam descrever a primeira vez que experimentei um curry típico, são mais nítidas as paredes, os barulhos, o tilintar dos talheres, os aromas e a ardência da língua do que a expressão facial, as palavras, a data, o bairro, a voz e o sotaque exato que me proporcionaram aquele momento tão caro. Se é verdade que o sapateiro olha pro sapato, a cozinheira em mim fez questão de lembrar com fidelidade a sensação do tempero, a despeito do que lhe disse o rapaz por quem estava enamorada.

O curry é feito homem inebriante e exótico, tinhoso e doce, gentil e cheiroso, forte e adorável, um ciumento incorrigível. Não dá bola pra chimango, acachapa a concorrência e faz soressair seus encantos diante de todo e qualquer outro ser vivente. Reina em minha despensa desde então, até pouco tempo somente na versão em pó. Até que encontrei outra versão a testar.

Em formato de pasta, empreguei-o nesta receita simples e rápida para reconfortar-me, ao mesmo tempo com exuberância e leveza, às dez e tanto da noite de uma segunda-feira.

Ingredientes:

  • 1 colher de sopa de azeite ou óleo
  • 1 peito de frango em cubos
  • 1/2 cebola picada
  • 1 cenoura grande em rodelas finas
  • 1 colher de sopa bem cheia de curry em pasta
  • 200 ml de leite de coco
  • sal a gosto

Como fazer:

  1. Leve a manteiga com azeite ao fogo até aquecer bem. Frite nela o frango até dourar.
  2. Acrescente a cebola e a cenoura, refogue até aquecer, misture a pasta de curry e acrescente meia xícara de água quente para dissolver. Ele vai tomar corpo e engrossar o molho lindamente.
  3. Quando a cenoura estiver macia, porém ainda al dente, adicione o leite de coco.
  4. Deixe ferver até engrossar como mais goste, prove, corrija o sal e sirva com algum arroz branco aromático (usei arroz de jasmim, polvilhei com gergelim preto). Ao comer, aproveite para relembrar o momentos simples e felizes do passado, depois agradeça pelo privilégio do presente e finalize imaginando as alegrias da semana vindoura.

.*. Post publicado originalmente em de 3 de dezembro de 2007.*.



13 comentários em “Um homem inebriante, inesquecível, cheiroso

  1. Fer Guimaraes Rosa

    Fer, seus textos sao sempre um nectar delicioso, leio saboreando cada palavra! Dei logo uma risadona no inicio deste, pois lembrei que outro dia comprei uns guaranas com data de validade vencida no mercadinho do indiano. ha ha ha! beijaoo,

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  2. nysa

    gostava mesmo de ir uma vez à india só para cheirar… deve ser maravilhoso! gostei muito desta receita , pois gosto de todos os ingredientes. assim fácil tem-se uma refeicao exótica no dia a dia! beijocas

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  3. nysa

    gostava mesmo de ir uma vez à india só para cheirar… deve ser maravilhoso! gostei muito desta receita , pois gosto de todos os ingredientes. assim fácil tem-se uma refeicao exótica no dia a dia! beijocas

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  4. Eduardo Luz

    Dadivosa, mais um texto pra coleção de belos!
    E a comida indiana toda é uma poesia com aqueles sabores, temperos, história e ardência. Ah! Me esqueci dos cheiros. Eu costumo dizer que o certo seria passar a comida indiana no pescoço…

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  7. Eduardo Luz

    Dadivosa, passando pra desejar um Feliz Ano Novo e que em 2009 tenhamos um montão de posts (com os textos) dadivosos por aqui !
    Ah! Além do nosso dadivoso Inter Blogs das Vovós Contemporâneas !
    Abs a todos.

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  8. Juliana Matheos

    Dadivosa Dadivosa, isso não se faz com uma gravida de quase 8 meses, venho ao seu blog sempre que posso, sempre que preciso, quando quero me inspirar pra cozinhar para o marido que, confesso, não tem o mesmo paladar que o meu, mais que admira o aroma que chega no quarto do computador sempre que a cebola frita alegre, quase dançando na frigideira!
    vi a foto a dois dias, não consegui parar de pensar, não achei curry em pasta, achei em pó, fiz a receita e agora com a barriga cheia, de comida gostosa e de um bebê que adora novos sabore, venho agradecer a receita compartilhada!

    obrigada dadivosa!
    boa semana!

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