De cintura larga, cabelos até a cintura, saia até o joelho, decote até o pescoço, rosto apagado e sobrancelhas revoltas, Maria Arlete não assistia à televisão, não ouvia rádio, fazia questão de deixar bem claro que ‘não era de desfrutes’. Vi uma foto dela comigo, eu devia de ter uns dois, três anos. Ela ajudava na limpeza da casa da mãe. Por debaixo da casca estudadamente pudica, tinha duas grandes taras, por assim dizer: sabonete Francis e pudim de leite.
Gastava, a cada banho, uma barra do seu sabonete preferido, três quartos de hora e boa parte da conta de luz – ‘esfregar bastante o sabonete debaixo da água bem quente ajuda a derreter a banha da barriga’, confidenciava como se fora truque de beleza.
Nas horas vagas, sucumbia aos pudins de leite que a Vó Dinah mandava e que a mãe nem chegava a ver a cor. Negava até a morte, jurava pela tia-avó mortinha, chorava e soluçava. A mãe, jovencita, inexperiente de tudo e um pouco assustada, não sabia bem como reagir. E Maria Arlete seguiu por alguns meses no afã interminável de mandar a brasa na sobremesa e purgar as calorias com a tal esfregação de barriga.
De corpo sinuoso, cabelos curtos em cachinhos bem-cuidados, macacão transparente, top de oncinha, sombra azul, batom-vermelho e sobrancelhas desenhadas, Íria não tinha dessas encanações, fazia questão de deixar bem claro um sensual orgulho de suas carnes. Nua em pêlo, sucumbia à gula com sofreguidão e gemidos, tendo a luz da geladeira do cliente como testemunha. Tivesse ela também avistado um pudim de leite da Vó Dinah, não contaria tempo para comer e lamber até a última gotinha de caramelo, antes-durante-e-depois das coxinhas.
De corpo rotundo, cabelos à escovinha, camisetão amarelo, legging azul-marinho, fone nos ouvidos e sobrancelhas tristes, Iraí fez ontem a faxina combinada, recebeu e foi embora. Não comeu o pão, o presunto, o queijo, a carne, o arroz, as frutas. Não tocou nos ovinhos de chocolate, não bebeu a coca-cola, não abriu o pacote de biscoitos. Sucumbiu, entretanto, ao pudim de leite da Vó Dinah que fiz no fim de semana e que repousava imponente na geladeira coberto por papel alumínio, ainda na forma, no aguardo do jantar com os amigos para fechar a noite com alegria. Dele só restou a forma, lavada e brilhante, mocozada no fundão do armário, como se fora arma de crime.
Fula da vida por ter os planos arruinados e a sobremesa subtraída, sorrio complacente ao pensar na sedução dessa sobremesa tão simples e caseira, na lascívia despertada em Marias Arletes, Írias e Iraís, cujos assaltos à geladeira alheia devem ser relevados diante da irrestibilidade de uma comida boa, seja coxinha de bar ou pudim de leite da Vó Dinah.
A receita do pudim da Vó não tem nada de diferente do tradicional, aquele que vai na embalagem do leite condensado. Ligue o forno para preaquecer em temperatura média. Numa forma de buraco no meio, despeje uma xícara de chá de açúcar. Leve ao fogo para caramelar, mexendo a forma com um pano, uma luva e muito cuidado até que o açúcar esteja derretido e marronzinho. Nada de meter a colher, senão desanda. Tire do fogo e – agora sim – com a ajuda de uma colher, espalhe o caramelo por toda a superfície da forma (laterais e cone central).
No copo do liquidificador, bata seis ovos, duas latas de leite condensado e use a lata para duas medidas de leite. Despeje a mistura na forma caramelada, cubra com papel alumínio, apóie em uma assadeira maior (redonda ou quadrada, desde que a altura chegue pelo menos à metade da forma do pudim) e leve tudo ao forno. Com um bule, ou chaleira, ou leiteira e cuidado, despeje água na assadeira até perto da metade da altura da forma do pudim. Parece complexo, mas tenha fé. Conte 45 a 50 minutos e faça o teste para saber se o pudim assou: levante um cantinho do papel alumínio e espete uma faca no pudim. Se sair limpa, está pronto.
Espere arrefecer e guarde na geladeira por pelo menos quatro horas, até gelar bem. Fique de olho em intrusos, utilize os dispositivos de segurança de sua preferência. Para desenformar, aqueça a forma por uns segundinhos na boca do fogão, para o caramelo derreter um pouco. Passe uma faquinha rente às laterais e ao cone central, para soltar tudo bem, cubra a forma com um prato de servir e, em manobra rápida e precisa, vire seu pudim para que ele seduza os convivas em toda sua formosura.
*Post inspirado pelo filme Estômago.
opa! cá está!
fiquei seduzida também.
acho que “vai ter” no final de semana.
: )
etsou entregue o pudim…tbm com uma maravilha de texto dessas nao há como manter-se armado…se entregue ao pudim!!!
bjs
essa receita tem diferença sim, vão duas latas de leite condensado, eu sempre faço com uma só, vou testa-la.
Ele fica ali paradinho mas nossos olhos não conseguem desviar dele, é uma atração fatal. Quem não sucumbe à sua cremosidade embebida em um calda de caramelo…”também sou filha de Deus”, diria as visitas anônimas que frequentam nossas geladeiras.
Bjs!
Fer, que historia sensacional! To com um sorrisao na cara. Adorei a Maria Arlete, com suas duas grandes taras–sabonete Francis e pudim de leite. Ha ha ha! Conheci gente que AMAVA esse sabonete. A foto esta soberba e esse pudim, ai, senhordjezsuis….
um beijo,
Oi Dadi!
Há tanto tempo não vinha aqui!
Adorei o texto, vc escreve bem demais, sempre viajo!!
Vc me leva a um lugar muito aconchegante com suas
estórias e seu tempero!!
Obrigada!
Beijos
Leilah
Linda história e quando mete comida é para mim mesmo. Você me deixou cheia de vontade de comer também o pudim. Bjinhos
Que coisa boa de ler essas historinhas. Quase um Nelson Rodrigues, hein?! Cheia de detalhes, caracteristicas, trejeitos… Amei!!!
E o que dizer do pudim da “nossa” vó Dinah? Que saudades dela…
Bjão
Humm, já havia anotado esta receita mas ainda não fiz…grande beijo
Belo texto! Parabéns! Por causa dele, releio,emociono-me de novo, baixo a guarda, arquivo a receita e preparo-me para o pudim, pois que em culinária também se alitera, não é mesmo, Dadivosa?
Que delicadeza!
Hummm… pudim de leite condensado tem gosto de infância, pq era sempre a sobremesa mais esperada e disputada! Doces recordações…
No meu lar-doce-lar é, desde sempre, a sobremesa predileta do maridão e da minha filhota.
Eu diria q um pudim é como um pedaço de chocolate: adoça a boca e o coração.
Um bjo bem doce para vc, querida. E obrigada por sempre nos presentear com essas delícias de textos e receitas…
dadiiiiiii, amei a historinha e agora deu vontade de comer pudim de leite da vó dinah ^^!
inspiradíssimo seu post do estômago, parabéns!
beijinhos, miki
Dadi, como todos/as, fikei inspiradissima com o conto e a foto. Melhor, com a novidade da receita (duas latas de leite condensado, 6 ovos). A que sempre fiz era diferente. Guess what?? Fiz a receita da Voh Dinah ontem e JURO saiu o MELHOR pudim de leite condensado que ja fiz na minha vida. E faco pudins desde que era menina!! E tenho 43 anos!!
Ficou perfeito, pela primeira vez:)) Serio. Muito obrigada por dividir.:))))
Bjs
Bri
Adorei as taras: sabonete francis e pudim. Escrita aromática!
Adoro pudins.
esta receitinha me parece bem fácil =).
Vou experimentar.
bjs e salud!
Amoooooooo pudim de leite! Minha mãe e meu namorado fazem um pudim de leite delicioso. Eu sempre queimo a calda (agora compro pronta). Tenho medo de comer em outros lugares, porque não gosto nadinha quando colocam raspas de casca de limão.
[red][b]que delicia esse pudim,meu namorado adoro toda semana eu faço essa sobremesa
hum que delicia vou fazer amanha mesmo a receita é muito bom ter isso na intrnet,pois é facil e tem em casa