Hoje tive 30 anos a menos

Alguma-coisa-e-25, ou 26, na estação de Canal, na boca da correspondência com a Linha 7. Levava os fones de ouvido bem acomodados e escutava um dos muitos programas de rádio Splendid Table, perfeitos para viagens em transporte público, já que em Madri muitos passageiros generosos deixam seus celulares no último volume, compartilhando com o vagão inteiro os toques e as músicas indecifráveis de seus vistosos aparelhos. O episódio tinha uma entrevista com um Senegalês de voz doce. Ele estava lançando um livro sobre a comida de seu país e comentava como a população 90% muçulmana convivia respeitosamente com a minoria cristã, e a prova era que, fosse no Natal ou no Ramadan, as famílias levavam comidas de suas festas aos vizinhos de outro credo.

Lá no fundo, uma nota bonita me fez arrancar os fones. Já tinha acontecido outro dia, nesse mesmo lugar. Desta vez era um violino tocado não sei se por um homem ou mulher. O casacão de chuva, os cabelos grisalhos amarfanhados, nem curtos nem compridos, os olhos apertadinhos e um rosto onde o nariz e o queixo protuberantes quase se tocavam não davam muita pista. Teria filhos e netos? Sobrinhos-netos, talvez?

Foi uma daquelas pausas contemplativas no meio da correria. A mesma que, minutos antes, me fez fotografar com o celular os vários baldes quadrados amarelos com a marca do Metro de Madrid em duas faces e “Disculpen las moléstias” com um bonequinho quase escorregando nas outras duas que aparavam as goteiras, e eu mesma quase escorregando ao tentar equilibrar celular, sombrinha e bolsa, agachada de saia e salto alto na poça d’água. (Mas me perco, Leitor e Leitora queridos. É a falta de prática da escrita que me faz expelir de uma só vez o que passa na cachola, misturado com o que aconteceu há pouco, já que a proprietária se enrolou e avisou que vai atrasar.)

Era uma música alegre, percebi nos primeiros acordes. Enfiei a mão na bolsa-buraco-negro e pesquei três moedas. Eram de 50 centavos de euro. Deixei na caixa do violino, olhei pra pessoa/violinista e sorri. Ele(a) sorriu de volta, distanciando o nariz do queixo e abrindo olhos e boca num sorriso calmo e doce, mostrando um solitário e protuberante dente da frente. Teria filhos, netos, sobrinhos-netos?

Tive vontade de ficar ali, mas precisava falar com a proprietária do apartamento em seguida e o trem já ia chegar pra me levar duas estações pra cima. Espiei no mostrador que demoraria três minutos e fiquei parada na escada rolante, sabia que dava pra ouvir tudo da plataforma ali embaixo.

A música era alegre, já falei, né? Era mais ou menos assim: pa-parara-papapa-parararara-parara-papa. Não sei assoviar e desafino um bocado, assim que preciso deixar com a imaginação do Leitor e da Leitora a tarefa de desvendar a música. Mas era bonita, me fazia sorrir e ainda faltavam dois minutos.

Do outro lado da plataforma, no trem parado que rumava ao sul, um menino brincava de pau-de-sebo na barra metálica onde, alguma meia hora antes, os viajantes devem ter disputado um cantinho onde se segurar. O pai do menino sorria. Estavam eles ouvindo também?

Um minuto para o trem chegar e a música pára (me recuso a tirar o acento desse pára, tenho até 2012, não?). E eu, que já mirava o(a) violinista lá de baixo, vi que um homem encorpado se aproximava. Seria ele um amigo ou conhecido? Teria a música parado para dar lugar a um papo?

O dedo não era de prosa e veio em riste, apontando a caixa do violino e fazendo o(a) provocador(a) da minha pausa esboçar um protesto, mas baixar a cabeça e começar a recolher as coisas.

A chegada desse homem me lembrou do breve relato do cotidiano paulistano lido hoje cedo, uma matéria sobre o café da manhã de bolo e café vendido em pontos de ônibus e em bocas de estações de trem e metrô que adoraria escrever eu mesma. Entendo o problema das padarias que pagam impostos, das autorizações para tocar música no metrô e dos fiscais que precisam mostrar serviço, mas não chego a compreender o que tem de mal em oferecer na rua um alento pra alma ou pro estômago dos transeuntes.

Lembrei também da experiência do Washington Post, que colocou no metrô um violinista profissional e seu Stradivarius de 3,5 milhões de dólares, fazendo-o virar ponto cego e surdo para a maioria dos passantes (aqui tem um vídeo). Fora meia-dúzia de gatos pingados, quem parava para ouvir eram as crianças, rapidamente puxadas pela mão pelos pais apressados. Essa história me chocou, em parte porque sou daquelas que pára para ouvir música na rua quando esta me diz algo aqui pra dentro, não importando estilo, instrumento, credo ou cor. Como quando dediquei quase uma hora de um dia lindo de bate-e-volta em Barcelona ouvindo este trio. E só me dei conta de que eles tinham atraído uma pequena multidão quando, tal como eu, um e outro e mais outro e vários espectadores se dirigiam à caixa amarela do chão, puxavam um CD da banda e ali deixavam dez euros. Um deles, sorridente e reverente, ofereceu aos músicos três latinhas de cerveja, que foram amavelmente recusadas. “No bebemos alcohol, somos así de raros!”. Um bolinho de cenoura e um suco de acerola, será que topariam?

Ainda no trem, metade do caminho, tive a epifania: assaria bolo de laranja e carregaria comigo às porções, junto com uma garrafa térmica de café com leite, guardanapos e bilhetinhos de “que tengas un buen día, gracias por tu música”, para retribuir diariamente essas pessoas que me obrigam a arrancar o fone de ouvido e sorrir. Subia as escadas da estação de destino quando me dei conta de que talvez não fosse muito prático carregar tudo aquilo, mais guarda-chuva, bolsa, cachecol e luvas, de que o café ficaria arruinado depois das 10, 12, às vezes 14 horas que separam o fechar da porta de manhã e a volta do trabalho, de que os músicos poderiam ficar com medo de envenenamento da louca risonha que, não se contentando em destoar dos passantes, ainda vinha oferecer comida, vai saber o que tem naquele bolo!!!

Ri comigo/de mim mesma, entrei em casa feliz por ser capaz de parar pra ver a luz tímida que apareceu e sumiu em seguida, os baldinhos e músicos do metrô, as velhinhas na rua, as vidas vividas ao redor. E lembrei da frase=sinônimo do Picasso, aquela em que ele diz que passou a vida inteira tentando desenhar como criança, ou coisa parecida. Porque eu – que apesar de me encantar com ‘dibujos’ não tenho no desenho assim nenhum talento – aos 35 recém-completados quero mais é poder me encantar com o mundo e com a cozinha feito a criança de 5 que brincava com um toco de cabo de vassoura e restos de massa de macarrão aos pés da vó por parte de mãe, tem como gatilho culinário-emocional-libertador-de-Dadivosa o bolo de laranja da vó por parte de pai, andou adotando mais de uma vó ocasional, e não vê a hora de voltar pra casa e apertar a vó por parte de marido, que já prometeu fazer um lábane pra mim.



9 comentários em “Hoje tive 30 anos a menos

  1. Fernanda

    Oi. Sempre li seu blog mas nunca comentei…chegou o dia 😉
    Muito lindo seu texto, fiquei comovida mesmo. Me identifiquei pra caramba.
    É um “exercício” difícil mas totalmente compensador ver e sentir o mundo pelos olhos e coração de criança! Um abraço e tenha um ótimo dia!

    Xará, tenho entre minhas leitoras queridas um verdadeiro Fernandário! Seja muito bem-vinda e obrigada por aparecer. Meu dia será ótimo, depois de ontem e de um comentário tão querido. Um beijo e dia feliz procê também ;***

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  2. Fafah

    Querida Dadivosa
    parabens pelos seus 35 recem-completados ! tambem fico boba assim qdo viajo a Paris e me delicio com os violinos nos metros! fico lá paradinha olhando por alguns segundos até ser puxada por marido. Quem nunca tocou um instrumento na vida talvez não tenha essa sensibilidade .Coloco lá minha modesta contribuição e um “Deus te abençoe”, mas daria tudo o que tivesse em mãos naquela hora ainda achando ser pouco para tamanho talento.
    bj

    Obrigada, Fafah! Segundos mágicos, né não? ;***

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  3. Lígia Wanderley

    De vez em quando dou uma espiadinha por aqui. Copio muuuuitas receitas… E leio a sua escrita. Muito agradável de ler. Me divirto e emociono também.

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