A falibilidade é benigna

Aceitunas

Aceitunas

Chef  Norberto Jorge nos recebeu à porta, vestindo calças coloridas, com sua mamá Carmen,  de cabelos de algodão e blush aplicado a rigor. Tão logo chegamos, esquecemos do caminho escuro, da pequena horda de mendigos alcoolizados, da região nada glamourosa onde ficava o restaurante.

Provamos um azeite siciliano, que cheirava a tomates verdes e goiaba,  um espanhol que sabia a ervas e um balsâmico cremoso, envelhecido naqueles barris empilhados ali, de fronte à mesa, logo na entrada.

As azeitonas postas à mesa tinham galhinhos e tudo, oravejam, e algumas estavam machucadas, assim como a charmosa cerâmica branca pintada de azul. Louça lascada me dá arrepios, mas ali, naquela atmosfera, escancaravam que o envase importava infinitamente menos do que o conteúdo.

Livros diversos de receitas, anotações e fichários aleatórios diziam que o lugar tinha alma. O chef veio nos explicar que, com a crise, haviam deixado de lado a formalidade e o fardo de um cardápio extenso. Nem mesmo uma folhinha com menu escrito havia. Nenhuma lousa, nada. Explicou-nos mais ou menos quais eram os pratos do dia e deixou escapar, quase que num acaso calculado, que poderíamos optar por pequenas porções, de tudo um poquitín. Os sorrisos e acenos de cabeça foram o sinal para a escolha, então.

La Recepción

Estamos na época de aspargos brancos, disse com um sorrisinho. Emendou: Los espárragos de abril para mí, los de mayo para el amo y los de junio para el burro” e com assim aprendi mais um ditadinho de comida, un refrán. Aqui os cozinhamos com muito mimo  (detalhou quantos minutos para a base, quantos para o meio, três para a ponta, se bem me recordo), assim os podem comer inteiros. Acompanha um vinagrete especial.

Como prato principal temos uma massa, um arroz, depois umas sobremesas. Ah, e a tortilla também está muito boa, tem frutos do mar e abobrinha. A descrição era quase displicente, sem delongas do tipo ao perfume de não-sei-quê, com um toque de não-sei-quanto, mas nada mais precisava ser dito. Sem salamaleques, esse Norberto. Nada de flanar pelas mesas exalando genialidade, nada de falsas simpatias, nada de muito frufru. Se sabia bom, parecia gostar de seu ofício, foi-se porta adentro.

La Família

La Família

Mamá Carmen veio à mesa, anunciando com orgulho que o lugar era artesanal, negócio da família. Somos do Brasil, deixamos escapar. Calhou de ser a mesma nacionalidade da dama de companhia da abuelita, que mora no andar de cima. Vou dizer a ela que tive clientes de sua terra, ficará feliz, comentou, também ela sem frescura ou falsa simpatia. Não estivesse num cantinho um pouco difícil de sair, teria levantado e dado um beijo esmagado na bochecha da velhinha. Contive-me, que minhas companhias nada tinham que ver com isso e não mereciam passar por esse papelão.

Veio uma cumbuquinha de sopa de feijão branco, que lembrava cassoulet. Poderia tomar litros daquilo, embora faltasse uma pitada de sal. Seguimos com o aspargo, um mimo, de verdade! Mais pão para sugar todo o azeite, por favor.

Espárragos

Espárragos

É porque está muito quente, avisou o garçom, enquanto colocava no centro da mesa um descanso de palha encimado por um grosso tecido azul.

Patellas y Paellas

Patellas y Paellas

Trouxe uma patella (que é tipo uma paellera de cobre mais grossa, sem pegadores, e pelo que andei lendo, é invento patenteado da casa) com a tal tortilla de vegetais e mariscos, ladeada por um molho de tomates muito frescos. Enquanto os ovos terminavam de cozinhar, as mãos do moço corriam pra lá e pra cá cortando a tortilla e formando as porções. Aaaahs, hmmms , comentários parcos e óbvios foram a trilha sonora de nossa mesa, a 41, atrás da porta de entrada.

Tortilla

Tortilla

Chegou a massa, também em patella fumegante. Não era ainda  a hora de atacar, sinalizou o garçom. Um pescado cru foi adicionado aos maltagliati, ou malcortado, que foram cobertos por papel alumínio e uma cúpula de cerâmica.

Sorprisa

À direita, um timer de porquinho que não saiu na foto, tão kitsch quanto encantador, tocaria dali a dois minutos, na hora exata de abrir a campana e liberar o rango que, desta vez, não iria para os pratos. Depois d’ele misturar tudo com aquelas mãos ligeiras, era cada um por si, ou cucharada y paso atrás, como se diz. Metemos os garfos no meio da mesa, pedimos mais pão para aproveitar o fresquíssimo molho de tomates, aceitamos mais uma garrafa de vinho. A segunda de três para quatro.

O prato seguinte era de arroz. Não imaginem arroz de cada dia, nem um risotto, tampouco uma paella. Era tão somente um arroz com açafrão e carnes diversas, acho que um pouquinho de lagosta, costelinha, adoráveis pedacinhos não-identificados com indefectível gosto de privilégio.

Arroz é coisa muito séria por aqui. Esse, descobri depois, tem como característica ser disposto em uma finíssima camada, quase não há um grão sobre o outro, termina de cozer na mesa mesmo, na quentura da patella, e forma uma crosta dourada por baixo, colando um pouco no fundo, mas sem grudarem uns nos outros.

Acima de cada prato, recebemos colheres de pau para atacar. E como aquelas colheres trabalharam! Raspamos cada queimadinho, cada grão, cada pedacinho de vagem, cada baguinho de grão de bico que insistisse em não vir para nossos pratos.

Comentamos sobre a charmosa garrafa azul da água mineral, sobre avós e tias, de como errar faz parte da cozinha, do quão importante e suficiente é trabalhar com ingredientes simples e frescos, de como estávamos felizes com a indicação que Gisela deu ao Sandro (Gisela, não te conheço, mas serei eternamente grata a você pela preciosa dica!).

Rimos do fato de termos apenas (??!!) três tipos de sobremesa para quatro pessoas, que absurdo, qualquer um aqui devoraria fácil esse pratinho de nada. Um largo sorriso foi a resposta do garçom ao pedirmos, antes mesmo de atacar, que trouxesse mais uma porção daquele sorbet de morangos de verdade, da mini tarte tatin e da mousse de chocolate aromatizada com laranja.

O chef dirigiu-se à mesa ao lado, acompanhado de um tipo que, na minha cabeça, poderia bem se passar por seu irmão mais novo. E cantaram e tocaram um violão com pegada ibérica, mas era tocado bem de mansinho, quase feito bossa-nova. E passaram reto e foram ao outro salão, para encenar um trechinho de Ne me quitte pas, assim mesmo em francês, do fundo d’alma, que essa canção não é para os fracos, tampouco para os frios.

E comemos, e matamos mais uma garrafa. E veio o café, em xicrinhas com tampa, coisas mais queridas. E vieram outras xicrinhas lascadas ainda menores contendo espesso chocolate quente, nano-croissants e tuiles. Disse o garçom que era uma merendinha, um lanchinho da meia-noite.

Embalada no vinho, na comida e na música, registrei abuelita, logo ali na mesa em frente, satisfeita com mais um dia ganho, olhar meio distante, sorriso meio feito. Assim desse jeitinho ficou por uns minutos, assim desse jeitinho fiquei a admirá-la.

La Mirada de Dña Carmen

La Mirada de Doña Carmen

Eis que após o café, o chocolate, as garrafas azuis vazias que caradepaumente pedimos pra levar como lembrança e o pedido de uns exemplares daquele azeite siciliano vendido na casa, chegou Norberto e violeiro-irmão para nos presentear com uma canção que não conhecia e que, dada a emoção da experiência, arrancou-me lágrimas bem quando Alfonsina vestiu-se de mar. (a quem quiser ouvir, encontrei um vídeo)

Te vas Alfonsina
Con tu soledad
¿Qué poemas nuevos
Fuíste a buscar?
Una voz antigüa
De viento y de sal
Te requiebra el alma
Y la está llevando
Y te vas hacia allá
Como en sueños
Dormida, Alfonsina
Vestida de mar.

Fomos os derradeiros a sair, ainda flagrei o chef fazendo as contas compenetrado, com uma pilha de toalhas para lavar como cenário de fundo.

Fin de la Noche

Fin de la Noche

Anotei o nome do vinho, um Fernandez de Pierola Crianza 2005 de Rioja, gostei muito, e mais não saberia dizer, que de vinho só entendo beber. Escrevo tudo isso ao chegar no hotel, meio borracha, mesclando as línguas com a ajuda de um teimoso corretor de texto que se adaptou totalmente ao novo país antes de mim e sem perguntar e foi mudando letras ao seu bel prazer (corrigi só os erros mais medonhos e deixei tudo como estava, era o que eu queria mesmo dizer). Foram cento e quarenta e sete fotos batidas e emocionante revê-las para escolher algumas para vocês. (veja a seleção aqui)

Hoje fui ler algumas coisas sobre o Casa Benigna, meio receosa de macular a fantasia. Encontrei de tudo um muito. Críticas pessoais ao chef, reclamações sobre o preço, o atendimento, a rua escura, a região feia, muito sal, pouco sal, peixe passado, peixe gelado por dentro. O que mais gostei de saber, no entanto, foi que a casa, com o sucesso, passou por uma ampliação, ficou muito mais cara, perdeu clientes, se perdeu no serviço, mas reconheceu a mancada e voltou à configuração original. Gostei de saber que agora, com a onipresente crise, Norberto soube se adaptar para sobreviver, a despeito dos que não compreendem como conseguiu se manter de pé até agora. Tenho por ele ainda mais respeito e admiração, pois não acredito em cozinheiros infalíveis.

Se a cozinha tem lá seus enroscos, se as louças estão nicadas, se o chef não é uma celebridade televisiva, se vez por outra erra a mão de sal na comida ou na conta, tanto melhor. Pois tenho pra mim que é justamente por errar tanto que gosto de cozinhar, que todos os tropeços do cozinheiro o fazem verdadeiro e por isso fascinante, que é a falibilidade daquela casa que a torna benigna.



35 comentários em “A falibilidade é benigna

    1. Dadivosa

      Fer, que saudades (vai ser a palavra mais vezes repetida por mim nesse ano!)
      Uma pena que não nos cruzamos por aqui. Lembrei muito de você com essas azeitonas, são eles que fazem. Estou aprendendo muitas coisas, a ver se logo logo ponho em prática na minha nova-nano-cozinha 🙂
      Beijos

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  1. mariana

    Que delícia de relato! E que vontade de ir a Madrid só para conhecer o chef e sua abuelita, provar todos os pratos e sair borracha e feliz. Adorei, que texto lindo!

    Um beijo *
    Mariana

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  2. Fafah

    Querida Dadivosa

    Louça nicada é muito comum nos restaurantes da Espanha viu!
    (eu achava estranho louças rachadas e espitacadas). bj e é uma delicia ler o que vc escreve, me transporto e me sinto sentadinha lá observando que nem voce!

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  3. lucy

    Todavía estoy por aquí y me alegra mucho poder leer nuevamente tus historias. Criminal me contó donde encontrarte y no te perderé de vista 🙂
    :*

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  4. joana pellerano

    Ontem ouvi do Sandro os comentários incríveis sobre o restaurante, e ele me contou que já tinha um post bem colorido aqui no seu blog. Muito bom. Até eu vou agradecer à Gisela… :o)

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  5. Dadivosa

    Meninas, fico com a sensação de que nada do que escrever ou fotografar vai chegar aos pés de estar ali, em companhia agradável, naquele lugar especial. Estou feliz que a sensibilidade de vocês captou um pouquinho disso tudo.
    Obrigada pela visitinha e pelos comentários tão queridos!
    Um beijo grande ;***

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  6. neide rigo

    Engraçado que comecei a ler este post há umas duas horas. Logo de início pensei no Sandro, no restaurante que ele me disse ter visitado. Logo depois vi a citação do nome dele e concluí, então, que estavam juntos. Não comentei na hora, mas fiquei maravilhada com a descrição, morrendo de saudade de Madri. Fui almoçar e tal e quando voltei tinha um comentário seu no come-se. Coincidência!! (deve ter sido no mesmo momento em que eu lia aqui). Beijo grande e boa exploração por aí. N

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    1. Dadivosa

      Neide, que casualidad!
      Venha me fazer uma visitinha, entonces. Conhece o Mercado de Chamartín? Tem de tudo um muito, só os ingredientes mais frescos. O mercado em si é muito simples, nem é muito ‘fotografável’. Mas dizem que as frutas, os pescados, as carnes e os queijos de lá são fenomenais. Bora? ;***

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  7. claudia

    estou entrando pela primeira vez em seu blog e deparo com um comentário pra lá de descritivo e sim quase um conto. Faltou saborear o prato pois as descrições do lugar, ambiente, música, utensílios foram perfeitas. Realmeente, valeria a pena enviar à casa para o chef Norberto sentir o que vc nos contou. bj
    Parabéns!!
    Claudia

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  8. miki w.

    dadi! ando tão off dos queridos bloguinhos que tinha me esquecido de como sua prosa é boa!

    e as fotos, as louças mostrando seus beicinhos, mamá carmen… na hora do nemequittepas eu teria caído nas lágrimas certamente!

    beijos e muitas e maravilhosas explorações dadivosas além-mar, miki

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  9. Eduardo Luz

    Que belo texto ! Ou melhor, que bela situação/noite/comida/ambiente/etc.
    Isto me leva a crer cada vez mais que críticos são necessários, mas não suficientes. O suficiente é se estar num lugar bacana com pessoas idem, uma boa garrafa de vinho e os sentimentos prontos pra “devorar” o que for servido!!
    Esta temporada espanhola promete!!
    Abs.

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    1. Dadivosa

      Edu, tudo bem? Estar com os sentidos a postos é mesmo essencial. Vamos ver se calha de eu poder encontrar mais lugares assim, tão especiais. Prometo contar tudinho
      ;***

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  10. Katia Rodrigues da Silva

    Meu marido indicou este texto, ele gostou, eu me emocionei, neste momento as lágrimas continuam a cair, não sei explicar…só desejo agradecer por me fazer viajar, juro que senti estar com vocês, foi mágico ! Beijos !

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    1. Dadivosa

      Mari, aqueles teus dois desenhos ornariam muuuito na minha casinha nova, você nem imagina! Estou pensando em trazê-los pra cá assim que der.
      E você falar das fotos da Casa Benigna me fez ganhar o dia!!! 😀
      Aparece por aqui numa das tuas andanças, será o máximo fazer uma ‘quedada fotográfica’ contigo
      Beijos muitos

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  11. wicca

    belo texto e deliciosas imagens!
    não sei se foi ousadia de turista ou sensação de acolhimento, seus clics tem gosto de fotos roubadas com permissão (como quando estamos em casa).
    já fazia tempo que não aparecia por aqui.
    uma boa estada em terras espanholas!

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  12. Renato

    Fiquei sensibilizado pela delicadeza na descrição.
    Acabei aqui pelos caminhos da cozinha, que pratico como amador.
    Está também desde agora nos meus favoritos. Voltarei sempre com certeza.
    Meu parabéns por tudo.
    Grande beijo!

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  13. norberto

    Querida Davidosa
    Estoy disfrutando de unos dias de asueto con mi familia en Amangani en Jackson Hole, Wyoming y he entrado en tu blog para hacerselo ver a mi hijo Mads el que vive en USA.
    Te quiero agradecer desde aqui la delicadeza y la simpatia que sin duda sientes por nosotros.
    Resulta muy estimulante y despues de un camino profesional que ya empieza a ser largo ver que el trabajoIpasion de uno es capaz de despertar esos comentarios de una persona como tu, pues ya sabes que “si el sabio critica, malo, pero si el necio aplaude pues peor” a lo que no es necesario anadir que si la persona de calidad aprecia pues nada mejor.
    Desde los 18 grados bajo cero de este dicembre, decirte que notamos el calor de tu comentario que invita a seguir con pasion y sin tanto miedo a equivocarse siempre que la intencion sea la mejor, ya que hay personas benevolentes como tu que saben valorar mas la actitud y la intencion que los resultados.
    Besos
    norbesaludos.

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  14. Dadivosa

    Norberto!!!

    Qué puedo decir después de un comentario tan lleno de Benignidad? Estoy sorpresa y contenta de verte por aquí.
    Que aprovecheis las vacaciones en familia, y espero veros pronto en la Casa.

    Un beso

    P.S.: Me encantó el dicho, uno más para mi pequeña colección 🙂

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