Saudade não cozinha feijão

O nome dela era Pilar, o que só descobri na despedida, e tem 74 anos, o que descobri mais ou menos na metade do caminho. Estava na minha frente, cabelos brancos, ralos e curtinhos, casaco bege como o meu, metro e meio, esperando para atravessar a rua, quando desatou a chover uma água fina e gelada. O homem de terno preto fumava entre nós duas, impaciente. Me enchi de coragem e, num ato tremendamente egoísta nesse dia tão estranho,  perguntei baixinho se ela não queria uma carona debaixo da minha sombrinha vermelha. Ela riu um riso tranquilo de vó e atravessamos com cuidado.

Falamos das obras que estão por quase todas as partes de Madri e da necessidade de andar atentas (eu sobretudo, diga-se de passagem, já que dois sábados atrás me estabaquei na rua de novo), da Gripe Aquela Inominável e da reação da vacina e do fato dela não ter problemas respiratórios, e de ela não precisar porque era para grávidas e velhos,  e de eu observar que ela não me parecia nada grávida e de rirmos muito e ela por fim dizer que “vacina é coisa pros fracos”. Para onde a senhora vai, não quero molestar, vou até El Corte Inglés e não tenho pressa, pego o ônibus 21 minha querida, então a senhora vai comigo até lá. Ofereci o braço, “claro, já somos amigas!”, sorriu.

E contei que peguei a sombrinha na última hora, porque tinha ouvido na TV que ia chover, ela contou que sabia mas não pegou a dela, pois sabia também que tudo se acerta e que ora-veja, o anjo da guarda dela era bem esperto e tinha me deixado ali de presente-carona. E eu perguntei como ela ia fazer entre o ônibus e a casa, e ela me disse que não me preocupasse que alguém ajudaria, como sempre, que as coisas se ajeitam como sempre e desejou que meus dias em seu país fossem agradáveis, encantadores.

Tive vontade de entrar naquele ônibus, ir pra casa dela, ganhar colo e comida de vó, já que eu não tinha nada que fazer no El Corte Inglés coisíssima nenhuma. Será que ela faria uma sopa quentinha, um chá, sacaria um cozido com grão-de-bico àquelas alturas do campeonato, uma lasanha congelada, um banquete, uns biscoitos adormecidos? Entrei no supermercado do El Corte Inglés só porque então lembrei que precisaria comer, mas mal pisei e dei meia-volta , espreitei pela esquina e vi que ela estava bem abrigada, embaixo da marquise. Atravessei a rua. Aproveitei que já chovia mesmo e mandei a brasa nos efeitos especiais estilo Emília do Sítio do Picapau Amarelo, com o rímel escorrendo cara abaixo.

Pulei o segundo, o terceiro e entrei no quarto mercado do caminho, o que fica embaixo do meu prédio. Foram uns 20 minutos perambulando pelas parcas gôndolas, em trajetória caótica, tropecenta e indecisa, até pescar uns camarões e uma seleta de legumes da porta de congelados. Vou me arranjar com um couscous.

Calei o soluço, falei com o Mano rapidinho já que ele precisava anestesiar um gato, conversei com meu amor, reativei os soluços, troquei emails com a Chiquita e me dei conta que, por mais que meu dia não tenha sido assim o mais bacanudo de todos os tempos, o que eu chorava pra fora era a saudade.

Uma saudade que, segundo a mãe do Xico Sá, não cozinha feijão.

Não cozinha feijão, mas refogou os camarões em azeite, juntou os legumes, pitada de sal, umas ervas de provença, um bocadinho de vinho branco e xícara de caldo de galinha, apagou o fogo, juntou o couscous, tampou 5 minutos e serviu regado com azeite.

Não cozinha feijão, mas passou uns bons minutos de braço dado com a Pilar, que não sei se é vó de alguém e tampouco me importa, já que senti como se minha fosse,

Não cozinha feijão mas olha, se o tanto de água que chorei hoje fosse parar ali na panela, renderia era um bom caldo.



23 comentários em “Saudade não cozinha feijão

  1. Fer Guimaraes Rosa

    ah, Fer….. sei exatamente o que é isso. mas passa. e se demorar muito, um dia evapora-se. agora venho eu aqui ler seu texto e nao sei como disfarçar os zoios alagados, a napa escorrendo, a cara de paspalha, pois ainda estou no trabalho. linda a sua historia, linda a Pilar e mais linda ainda você!

    beijos, com saudades tambem, porque carregamos ela pra onde vamos,

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  2. Fernanda

    Puxa, Fer! Que dózinha de ti! Sabe que eu tb tenho carência de avó? Longe, então…
    A distância da tela é a mesma do coração. Os braços não apertam, mas o pensamento afaga.
    Cuide-se aí. Bj

    Xará, posso sentir esse carinho todo como se você estivesse aqui do meu lado, estou me cuidando sim, querida. ;***

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  3. Juliana

    ai neguinha! q saudade de apertar o peito! que choro engasgado durante esse texto!

    você está comigo, todo dia e o dia todo, em pensamentos, atitudes e “coisinhas nossas”.

    amo você de um tanto que não cabe aqui!

    Chiquita, assim eu choro mais, fiiiiiilha!

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  4. Cristina - Natal

    Afff! Fiquei muito emocionada com seu texto. Delicadeza pura! Saudade é um troço muito louco!! Faz a gente chorar e rir ao mesmo tempo. Digo isso pq a gente fica triste quando lembra de alguém que tá longe, ou que já se foi…mas também faz a gente rir, lembrando dos momentos alegres e felizes que passamos com aquela pessoa. É coisa doida mesmo, ruim e boa ao mesmo tempo. Afff!! Tô sentindo muita
    saudade agora!! Pelo menos é da boa!! Kkkkkkk!! Beijos!

    Cristina, você tem toda razão… saudade é mesmo um troço muito louco 🙂 Um beijo

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  5. Babbo

    Como sempre, minha Querida Dadivosa, o Babbo baba toda vez que balbucias algo. Por mais simples que seja. Esse dia maravilhoso que vivenciaste, é digno de tanta euforia por todos que passarem por uma certa Pilar. Que bela expressão. Lágriams são como uma renovação de vida, como força para prosseguir para o alvo. Um grande bejo. Babbo

    Babbo, então eu estou super renovada… ou “rejuvelhecida” 🙂 A Pilar era uma mistura de Dada com Tia Lair!

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  6. Carla Duclos

    Oi Dadivosa,

    Sei bem como é essa saudade. Não é nada fácil estar longe. Mas a gente vai sentindo e lidando com ela, cada um a sua maneira.

    Me emocionei com seu texto.

    Beijo,

    Eu sei que você sabe bem, Carla. Força na peruca pra nós 🙂

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  7. Glaucia

    Oi, Dadivosa, dá um jeito de vir embora logo pois aqui no Brasil estamos
    sentindo uma saudade “danada” de você, de suas histórias e causos…
    Bjs de Luz. Glaucia

    Oi, Glaucia! As histórias e causos eu vou contando daqui mesmo, e assim que conseguir pisar por aí de férias eu aviso 🙂 Beijos procê também!

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  8. Ruth

    oi querida
    Em “minhas teorias”aparecem Pilar em nossas vidas, para nos lembrar de exercitarmos virtudes feito :generosidade,afeto,solidariedade e por aí afora.Em contra partida ;recebemos as mesmas em dobro, e ainda podemos lavar a alma com o choro que nos fortalece e eleva o espírito.Não é facil rejuvelhecer, este privilégio é digno de grandes e doces pessoas feito você.Quando li o texto me veio a imagem nítida do que aconteceu.Incrível como você consegue com que a gente vivencie o texto a ponto do nó não se despregar da garganta.Rezo para que Deus te conserve assim sensível ,amável e acima de tudo nossa amada e querida filha.
    Beijos também com muitas saudades
    Mãe

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  9. Uci na Cozinha

    Obrigada querida

    Tão lindo teu texto, tão gostoso de ler…como um doce de vó, um chamego de mãe, um colinho de pai, um amor correspondido…

    Me emocionei muito mesmo!
    Uma delícia…

    beijos
    Uci

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  10. Renata

    Dadi, que bom que passei por aqui, assim meu dia ficou mais feliz, apesar do seu chororô… Que presente o seu texto, assim como o brinde do texto do Xico. Parabéns e força na peruca por aí!

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  11. susy pavlov

    Olá,
    O que me fez enviar-te este mail não foram as maravilhosas receitas,mas sim,a historinha da avó que voce encontrou pelo caminho,cheguei a sentir o frio e umidade da tal chuva,vê se pode?Achei lindo!E como achei lindo não resisti e encaminhei para minha filha ler,ela respondeu-me:”mãe,parece tu com as velhinhas pela rua”,adoreiiiiiiiiiiiii!!!Quanto as receitas,fiquei enlouquecida com várias que certamente testarei,adoro cozinhar.Gostei muito do blog,prazer em conhecer-te mesmo que virtualmente,meu nome é Susy!!!
    Bjs,saúde e paz!!!

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