Fomes Escondidas

Manúbrio, mais uma daquelas palavras feias para coisas bonitas, é a parte superior do osso esterno, aquele “U” onde se encontram as clavículas.  A exatos 21 cm ao Sul do manúbrio e 16 cm ao Norte do umbigo – tive a pachorra de medir – descobri o esconderijo das minhas fomes.

M. F. K. Fisher, escritora de quem sou fã e que teve dois livros editados no Brasil traduzidos pela Nina Horta, de quem também sou fã, disse no prefácio de “The Gastronomical Me”: “It seems to me that our three basic needs, for food and security and love, are so mixed and mingled and entwined that we cannot straightly think of one without the others. So it happens that when I write of hunger, I am really writing about love and the hunger of it, and warmth and the love of it and the hunger of it…and then the warmth and richness and fine reality of hunger satisfied… and it is all one.” M.F.K. Fisher desossava fomes de comida, de segurança e de amor como ninguém. Estou bem longe disso, pois mal acabo de achar que descobri o paradeiro delas e ainda preciso comer muito arroz e feijão para tão somente entender quais e quantas são, que dirá discorrer sobre elas.

Costumo dizer que a comida é só uma desculpa, já que essas fomes, ainda que escondidas, são o fundo dos meus escritos. Porque, pra mim, são todos fomes, esses sentimentos tão difíceis de diferenciar. Angústia, a fome de encontrar solução praquela situação agoniante sobre a qual não se tem controle; desejo, a quase insaciável fome do outro;  ansiedade, a fome que faz parecer que o mundo vai acabar na velocidade daquela taquicardia; paixão, a fome que há tempos não vejo;  desamparo, a fome que provoca atitude de desespero fazendo o vivente refém de um vazio, destrutivo ou apenas pouco nutritivo encontro de uma noite só ou vários anos; solidão, a fome suportável;  medo, a fome que paralisa; saudade, vontade, excitação, raiva, muita raiva, não pertencimento, coragem, ternura, frustração.

Descobri o esconderijo das minhas fomes todas outro dia, enquanto tomava um sol e apoiava ali o livro da vez, sem me importar com a marca feita pela sombra. O X no mapa do pirata, o indicador de que ali foi enterrado o baú, é uma pinta marrom em forma de coração deitado bem na boca do estômago (onde mais????), como podem ver na foto. Mede 5 mm dos extremos Leste e Oeste e 5 mm do Oiapoque ao Chuí – outra vez parei tudo e medi, que fomes escondidas são importantes demais para deixar a preguiça vencer a precisão.

A preguiça, também ela mora ali, fome duas-caras que tanto pode ser uma delícia com ou sem companhia ou uma inércia nefasta daquelas que forma uma crosta sobre outra fome, a de ver o mundo lá fora. Ao lado dela, só uns olhos assustadores brilhando na escuridão, uma fome ainda sem nome, a que jogou Dadivosa num calabouço, de castigo, sem cozinhar ou escrever. Jogo aqui, sem pensar ou reler, fragmentos que me acompanham antes de pouco dormir e acordar às 4h30 sem motivo aparente. Meses de insônia e inapetência foram o preço pra encontrar o cortiço onde vivem essas desgraçadas fomes que,  com a ajuda de Dadivosa fugida do castigo, hão de me trazer de volta a fome que me é mais cara, a de escrever.



17 comentários em “Fomes Escondidas

  1. Marina Maria

    Menina, já não lembro como vim parar nesse blog, mas teu texto traduziu um sentimento que sempre tive sobre a comida – que estava claro, para mim, em minhas profundezas, mas que nunca consegui explicar com essa luminosidade que você conseguiu. Parabéns pelo texto!

    Abraços

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  2. Taís

    Definitivamente, você traduziu coisas que sentimos e não conseguimos dar nome. Que escrevemos mas que nunca são traduzidas pelas palavras. Que coisa linda!

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  3. Manu Alves

    Definitivamente, você traduziu coisas que sentimos e não conseguimos dar nome. Que escrevemos mas que nunca são traduzidas pelas palavras. Que coisa linda! [2]
    Dadi, vc é poetisa!

    Responder
  4. Cleide Lopes

    Nunca havia me identificado tanto com esses sentimentos, lindo me fez pensar nas minhas fomes internas, muito prazer!

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  5. Vânia

    Olá, Dadivosa. Amei seu site e gostaria de enviar minha experiência dadivosa pra vc mas o link com o seu email não abre.
    Como faço pra entrar em contato contigo?
    Bjão,
    Vânia (a borboleta na cozinha)

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  6. Debora Correa

    Dadi, espero que tudo esteja bem com vc e que logo vc volte a escrever. Eu nunca posso deixar de dizer que uma das primeiras receitas que eu fiz na vida foi o bolinho de laranja da vó Nair! E de lá pra cá, modéstia à parte, eu virei uma bela cozinheira! Volta logo Dadi!!!
    Beijão

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  7. Camila

    Emocionante… Esse texto cala fundo, provoca uma dorzinha boa, dá vontade de rir e chorar ao mesmo tempo…
    GENIAL. Parabéns pelos seus belos dons de cozinhar e escrever. Ambos tem o poder de mudar o mundo devagarzinho, mas definitivamente…

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  8. wair

    Procurei onde se localizava o esconderijo de minhas fomes. Descobri que devo ter um território interno semelhante a um formigueiro – estende-se em várias direções, caminha sob a pele (e de vez em quando sobre esta), vai do pescoço ao baixo-ventre, passando pelas costelas, peito…um regime me espera o resto da vida, pelo visto. Abs e lindo, lindo texto.

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  9. Dadivosa

    Pessoal querido,
    Estou voltando aos pouquinhos e, embora não apareça muito, leio todos e cada um de seus comentários.
    Obrigada por não desistirem de ler esse blog bissexto! 😀
    Beijos

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